top of page
Buscar
  • Foto do escritorVital Psilo

A história da psilocibina na França (Parte 2)

Atualizado: 27 de set.



Na Parte 2 do especial, vamos conhecer os primeiros experimentos modernos com a psilocibina no Hospital Sainte-Anne de Paris. Iremos focar nas tentativas dos pesquisadores em acertar a dose correta, na falta de reflexão sobre os parâmetros comparativos entre os cogumelos sagrados e a psilocibina sintética, e na influência do “setting” durante as experiências psicodélicas.

Os experimentos de psiquiatras com a psilocibina

A médica francesa Anne-Marie Quétin descreveu em sua tese como Roger Heim organizou o envio de psilocibina sintética ao Hospital Sainte-Anne, na forma de comprimidos e solução injetável, disponibilizados pelo laboratório farmacêutico Sandoz, em julho de 1958. A substância foi fornecida ao departamento do psiquiatra Jean Delay, logo após Albert Hofmann e sua equipe terem identificado, extraído e sintetizado os princípios ativos dos cogumelos sagrados mexicanos.

A equipe de Jean Delay iniciou um estudo significativo sobre a psilocibina, explorando seus efeitos fisiológicos e psicológicos, ao mesmo tempo em que avaliava seu potencial terapêutico. Este estudo tinha como objetivo administrar a droga tanto a voluntários saudáveis quanto a indivíduos "mentalmente doentes". Os primeiros dados sobre o estudo psicofisiológico e clínico da psilocibina foram publicados em 1958 e mostraram que, dos 16 protocolos conduzidos com pessoas saudáveis, a dose de efeitos mínimos foi de 5 mg, aplicada em apenas um indivíduo.


Entretanto, não há indicação de que as doses usadas foram calculadas para se aproximar das quantidades de cogumelos sagrados utilizados pelos povos indígenas ou das autoexperiências de Robert Gordon Wasson e Heim. A maioria dos voluntários recebeu 10 mg em uma única sessão – uma dose que parece arbitrária para dezenas de protocolos. Entre esses experimentos com voluntários saudáveis, também houve dois protocolos com dosagem de 11 mg, um com 12 mg e outro com 14 mg. Além disso, uma publicação de 1961 revelou que, dos 47 voluntários qualificados como “saudáveis”, 35 eram médicos.


No geral, os voluntários experimentaram a psilocibina apenas uma vez, mas em seis casos, houve uma segunda tentativa. Os registros afirmam que "aos indivíduos normais foi administrada uma dose de 10 mg por via oral; em alguns casos em que a reação foi mínima, foi feita uma segunda tentativa com uma dose mais alta, mas nunca superior a 14 mg". A dose mínima de 5 mg e a dose comum de 10 mg, portanto, parecem ter sido decididas aleatoriamente, em vez de considerar os dados empíricos dos autoexperimentos anteriores com os cogumelos sagrados.


Cautela com as doses e a falta parâmetros comparativos com os cogumelos sagrados


Quanto à ideia de um limite de dose a não ser ultrapassado, ela foi mencionada por Delay já em 1958, em uma apresentação que ele fez no Congresso de Psicofarmacologia em Roma. Ao apresentar pela primeira vez os ensaios clínicos de sua equipe com a psilocibina, ele explicou que "a maioria dos testes em voluntários saudáveis foi feita com 9 ou 10 mg de psilocibina, apenas um com 14 mg, outro com 15 mg... Apesar do caráter transitório desses estados, sua natureza deve nos incitar a considerar essa dose de 15 mg como um limite a não ser ultrapassado.” Delay e seus colegas foram surpreendentemente cautelosos com a psilocibina. Esse limite de dose de 15 mg é certamente muito menor do que as doses usadas no México nas cerimônias em que Wasson e Heim participaram, assim como em relação às grandes doses correspondentes às autoexperimentações de Heim, mencionadas na Parte 1 do especial.

Em uma carta de 1958 do Dr. P. J. Nicolas-Charles para Heim, o médico informa ao micologista que, "no que diz respeito ao estudo clínico da preparação de psilocibina que recebi, ainda não tive nenhum efeito alucinógeno, tanto que o laboratório Sandoz, em Basileia, se ofereceu para analisar o produto que eu utilizei e enviar um produto fresco". Ele também disse a Heim que a equipe de Hofmann "até duvidava que este composto [a psilocibina sintética] resuma as propriedades do cogumelo".

Para fazer comparações diretas com a psilocibina, Nicolas-Charles pediu a Heim alguns cogumelos para estudar por conta própria. Embora não tenhamos informações sobre o resultado dessa tentativa de comparar os efeitos da psilocibina sintética com os dos cogumelos, a carta traz indicações manuscritas a lápis, em letra de Roger Heim: "10 g", "0,6" e "0,1". Será que ele tentou calcular a quantidade de psilocibina em um determinado peso de cogumelos sagrados cultivados no Muséum national d'Histoire naturelle (MNHN)? É surpreendente que nas primeiras publicações médicas francesas sobre o estudo clínico da psilocibina não haja vestígios de qualquer reflexão sobre a equivalência entre as doses de cogumelos usadas nos experimentos preliminares e as doses de psilocibina sintética usadas nos experimentos hospitalares.

A influência do “setting” na experiência

Um dos voluntários "saudáveis" não era médico: o poeta Henri Michaux também foi um sujeito de pesquisa em Sainte-Anne. Em uma nota publicada em 1960, Michaux evoca "a extrema indecência de estar sob o efeito de uma droga na frente de estranhos que não a tomaram". Durante o experimento, ele relatou, por exemplo, que um médico sussurrou no ouvido de outro: "caso típico de despersonalização".

Em uma carta a Heim agradecendo por permitir sua participação no experimento com psilocibina, Michaux descreveu “a presença desconfortável de quatro testemunhas médicas em uma sala do diretor... eles criaram uma situação muito desfavorável para mim". Michaux caracterizou esse contexto um tanto desorganizado e intrusivo, como "muito desfavorável", destacando que a abordagem experimental francesa parecia ignorar o papel do “setting" em possibilitar uma experiência positiva.

Isso nos leva de volta à questão de como considerar os parâmetros extrafarmacológicos que afetam a experiência de uma pessoa com a psilocibina, ou seja, a presença ou ausência tranquilizadora de uma pessoa que poderia ajudar a evitar que a experiência psicodélica fosse desagradável. Na "autoobservação #28" da tese de Anne-Marie Quétin, a psicóloga que entrou na sala para aplicar os testes foi considerada "uma torturadora”. Um voluntário do estudo afirmou que "a presença de um terceiro muitas vezes é profundamente perturbadora" e outro comentou: "estou um pouco incomodado com a natureza prosaica do examinador, suas preocupações como um serviçal que... interrompe meu ímpeto com perguntas". Quétin concluiu: "a atitude do médico, suas perguntas, o exame físico... são todos fatores que trazem o sujeito de volta à 'realidade', suprimindo momentaneamente a crença delirante. Portanto, tentamos reduzir o máximo possível esses diferentes exames para manter uma atitude perfeitamente neutra durante todo o teste".


Essa conclusão ilustra a maneira como a fenomenologia da experiência é percebida: neste momento, é uma "crença delirante", ou seja, uma manifestação do registro patológico, em vez de estados psicológicos que dão origem a perspectivas que podem escapar das normas em torno do que é normal e patológico. Também revela uma posição explícita sobre a importância do “setting” nos efeitos psíquicos. No entanto, essa atitude "perfeitamente neutra", pensada para permitir a objetificação dos efeitos, poderia ser experimentada pelos participantes como dolorosa, como no caso de um médico espanhol que em 1958 realizou dois autoexperimentos com LSD e psilocibina em Sainte-Anne, e que depois escreveu sobre seus examinadores: "eles haviam esquecido sua natureza humana e nem sequer se lembravam da condição indefesa do homem que tinham à sua frente". A objetificação dos efeitos das drogas levou, portanto, à objetificação das pessoas que as tomaram, certamente tornando a experiência ainda mais dolorosa quando vivenciada no estado psicodélico.

Quétin também enfatizou a dificuldade de submeter os voluntários ao estudo das modificações biológicas causadas pela psilocibina. Ela observou que a coleta de dados, como múltiplos testes de sangue e o uso de eletroencefalografia, modificou "consideravelmente o teste de psilocibina". Alguns voluntários também reclamaram do "tédio" ou mesmo da "irritação" causados pelos testes psicológicos realizados durante as sessões, que exigiam movimentação pelo hospital, incluindo a subida de escadas. Na medida em que a importância do “setting” foi observada, os parâmetros dos experimentos com psilocibina foram alterados para não interromper a fase emocional do estudo psicopatológico. Essas mudanças ilustram o método de tentativa e erro usado pelos psiquiatras de Sainte-Anne, que aplicariam correções aos protocolos conforme avançavam. (Continua na Parte 3)


Referência

Dubus Z, Grandgeorge E, Verroust V. History of the administration of psychedelics in France. Front Psychol. 2023 Sep 1;14:1131565. doi: 10.3389/fpsyg.2023.1131565. PMID: 37744588; PMCID: PMC10513055.

3 visualizações0 comentário
Post: Blog2_Post
bottom of page