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  • Foto do escritorVital Psilo

A história da psilocibina na França (Parte 3)



Na Parte 3 deste especial, vamos nos concentrar nos experimentos envolvendo pacientes que receberam psilocibina no Hospital Sainte-Anne de Paris, destacando as controvérsias em relação às doses administradas e a falta de reflexão sobre os conceitos fundamentais de "set" e 'setting'.

Os experimentos com a psilocibina em pacientes do Hospital Sainte-Anne

Além de seu relato sobre os experimentos com "voluntários saudáveis", Anne-Marie Quétin também descreveu os protocolos realizados em 72 pacientes (64 mulheres e 8 homens) que sofriam de diversos transtornos mentais, classificados em cinco grupos: "esquizofrênicos", "delírios crônicos", "psicoses maníaco-depressivas", "debilidades mentais" e "neuroses/psiconeuroses".

O estudo clínico final de Quétin incluiu 61 pacientes, excluindo 11 devido a "exames ruins". Os detalhes não são conhecidos, mas sabemos, por exemplo, que uma paciente com anorexia e depressão foi deixada sozinha em seu quarto após receber uma injeção de psilocibina. Como ela já tinha sido tratada com clorpromazina, um antipsicótico que parece atenuar os efeitos da psilocibina, os médicos acharam que sua reação se limitaria apenas a modificações somáticas e a excluíram do estudo.

No entanto, esse caso específico se tornou uma das raras instâncias em que a paciente teve uma "melhora incontestável" com a psilocibina. Após uma injeção intramuscular de 8 mg da substância, eles deixaram a paciente sozinha no quarto, onde ela se sentiu "no paraíso" e experimentou uma certa transcendência do tempo. Na verdade, essa paciente relatou sua experiência em numerosos poemas com títulos que evocaram euforia, e até mesmo êxtase místico: "Aleluia, Plenitude, Primavera, Éden, Euforia".

Posteriormente, os médicos interromperam seu tratamento com clorpromazina e, 3 dias depois, injetaram-lhe novamente 8 mg de psilocibina, desta vez sob supervisão. Esse segundo teste levou a uma enxurrada de memórias esquecidas que, segundo os médicos, expôs a psicogênese de sua doença e seus traumas emocionais. Consequentemente, suas reações foram muito diversas, e a melhora de seus sintomas foi observada durante os experimentos e nos dias seguintes. O estado geral da paciente, incluindo o aumento de peso e uma "inversão de humor com euforia", resultou na publicação de um estudo de caso.

Diferenças entre as vias de administração e a falta de preparo psicológico dos pacientes

A ação mais rápida das injeções de psilocibina fez com que os médicos preferissem a via intramuscular à via oral. As médias de doses usadas nos protocolos foram: 9,26 mg por via oral, 8,36 mg por via subcutânea e 9,07 mg por via intramuscular. Os médicos administravam psilocibina prontamente, exceto quando o tratamento já estava em andamento, ou em algumas situações específicas, como no caso da paciente com anorexia, que permitiu estudar a interação medicamentosa com a clorpromazina.

Outro fato, é que a psilocibina poderia ser administrada no primeiro dia de internação no hospital, sugerindo que os médicos não consideravam necessário preparar os pacientes psicologicamente. Além disso, a leitura das 19 observações relatadas na tese de Quétin, que fornecem as descrições da ação da psilocibina, mostra que as crises de ansiedade eram mais comuns do que a euforia. Entretanto, sua ação terapêutica foi admitida, dadas as melhorias momentâneas que foram observadas, mas Quétin enfatiza que "o trauma que constitui essa psicose experimental e a amnésia parcial que segue as fases confusas-oníricas, parecem trazer um considerável impedimento ao uso da psilocibina".

Contudo, em 1961, Jean Delay e seus colegas estavam mais focados nas compreensões biológicas dos transtornos mentais e consideravam que a lacuna entre psiques normais e patológicas deveria ser corrigida não pela psicoterapia, mas sim pela psicofarmacologia. Voltamos, então, à questão da dose eficaz.

"Quanto maior a dose"... e quanto melhor o “setting

As doses de psilocibina estabelecidas em Sainte-Anne diferiam das usadas por uma figura emergente na pesquisa psicodélica do outro lado do Atlântico, o psicólogo Timothy Leary. Em 30 de junho de 1961, enquanto ainda estava em Harvard, ele escreveu para Delay. Em sua carta, Leary enfatizou fortemente o valor terapêutico da psilocibina. Ele descreveu o trabalho que havia feito com prisioneiros. Seus bons resultados e as potencialidades da substância, segundo Leary, deviam-se tanto ao “setting” favorável dos experimentos quanto ao uso de doses altas:

"Nós, aliás, usamos doses mais altas do que as relatadas na literatura. Vinte miligramas é nossa dose padrão, e usamos até 40 mg. Quanto maior a dose, mais agradável e esclarecedora é a experiência. Os dois por cento que acharam a experiência desagradável ingeriram doses menores." (Leary, 1961)

Não há informações se Delay respondeu ou não a Leary sobre essa diferença significativa entre as doses usadas pelos dois grupos de pesquisadores.

O uso de psilocibina por artistas e mais reflexões sobre o “setting

Outro protocolo realizado em Sainte-Anne durante o mesmo período também indicou uma reflexão sobre o “setting” de administração da psilocibina. Foi conduzido por René Robert, como parte de sua tese médica de 1962. Ele escolheu 27 artistas amadores ou profissionais como sujeitos de pesquisa e concentrou-se na análise das 183 produções artísticas feitas durante o protocolo. A psilocibina foi então administrada aos voluntários, em comprimidos, de acordo com a dose padrão de 10 mg definida por Delay.

Inicialmente, Robert trabalhou dentro do hospital: após ingerirem a psilocibina, ele pediu aos participantes que iniciassem uma atividade criativa, como desenhar ou pintar. No entanto, logo ele notou a dificuldade deles em manter essas atividades. Então, discutiu a necessidade de reorientar o quadro de sua pesquisa e sugeriu realizar esses protocolos fora do hospital, nas casas ou estúdios dos artistas, lugares considerados mais propícios para fazer arte. Conclusão

A literatura médica francesa sobre o interesse terapêutico da psilocibina parece ter terminado nos anos 1960 e não houve mais experimentos publicados nesse período. A pesquisa com psilocibina na França reflete um momento na história da psiquiatria em que as causas biológicas dos transtornos mentais estavam sendo buscadas. Houve uma sobreposição entre experimentos psicodélicos exploratórios e a prática da medicina, o que levou à objetificação do paciente. Além disso, as reflexões sobre a importância do “set” e “setting” para o sucesso das terapias psicodélicas provavelmente não foram atendidas.

Foi uma época em que o cuidado estava se voltando mais para o tratamento ambulatorial de um lado, e do outro, os interesses farmacêuticos na comercialização de antipsicóticos eram consideráveis. Isso também explica porquê os experimentos foram interrompidos e fica ainda mais evidente à medida que a imagem cultural dos psicodélicos na metade dos anos 1960 se tornava problemática.

Por fim, os resultados medíocres de ensaios clínicos com a psilocibina na França criaram uma representação negativa persistente, que ainda tem um impacto duradouro na medicina francesa em sua relação com a terapia assistida por psicodélicos; até o momento, os estudos psicodélicos não foram retomados no país.

Entretanto, certas equipes de pesquisadores franceses parecem estar abandonando essas estruturas antigas, uma vez que a perspectiva de ensaios clínicos com o uso de psicodélicos está sendo cada vez mais estudada e em breve deverá ser retomada na França, talvez com um foco maior nos conceitos de “set” e “setting”.


Referência


Dubus Z, Grandgeorge E, Verroust V. History of the administration of psychedelics in France. Front Psychol. 2023 Sep 1;14:1131565. doi: 10.3389/fpsyg.2023.1131565. PMID: 37744588; PMCID: PMC10513055.

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